Por quem as cornetas calam

Foto: Amarildo Filho

Aprendi com meu querido amigo de vida, um dos muitos que minha profissão me deu, Phelipe Caldas que a unidade da mesma arquibancada é uma mentira. Sendo menos duro: um senso comum. E tais como os sensos comuns, cheio de vícios, de imprecisões, de superficialidades que levam às distorções.

Quando a gente pisa no Almeidão, a gente vê a torcida do Belo. Mas, quem é mais atento, sensível e até perspicaz, enxerga que dentro dessa grande tribo da estrela vermelha existem muitas outras tribos.

Temos as mais óbvias, as torcidas organizadas ou movimentos de torcedores, facilmente identificáveis. Outras estão menos evidentes, tais como a famosa divisão bélica (e aqui você lê no conotativo ou no denotativo) entre os que apoiam e os que são críticos à gestão do clube. Nesse maniqueísmo bobo e invariável, somos todos babões ou cornetas. Invariavelmente.

Aliás, este PodBotafogo, e toda sua estrutura de resenha, é reflexo dessa tensão entre torcedores a partir de posturas diametralmente opostas.

Eu, por exemplo, sempre fui o babão. O cara que defendia as diretorias. Por ter vivido o clube em sua complexidade administrativa e não considerar justas algumas das críticas (a maioria delas desamparadas de realidade), acabava adotando uma postura “não é bem assim” nas discussões com outros torcedores.

Enquanto funcionário nos anos de 2018 e 2019, havia um impeditivo deontológico para as críticas públicas. Ninguém sai por aí falando mal do patrão, não a menos que não precise do emprego. Ainda assim corri sérios riscos nos comentários mais ácidos no PodBotafogo (e olhe que eu precisava, viu). Tanto que suspeito que minha participação no podcast tenha pesado para a minha saída do clube.

Feito esse recorte social, adentro minha análise mais aprofundada sobre a composição sociológica da nossa torcida a partir do elogio ou da crítica ao time em campo, aos diretores, ao clube enquanto instituição.

Não perderei meu tempo discutindo o papel dos babões. São pessoas naturalmente pouco interessantes, acrescentam pouco na emancipação política dos torcedores, exercem apenas um papel importante, é bem verdade, de contrapeso aos cornetas inveterados e irracionais que podem colocar tudo a perder.

Os babões são necessários, mas previsíveis, e, a considerar que criticar sempre foi mais fácil (e mais prazeroso) do que defender alguém, a corneta sempre vai existir e cumprir seu papel social, ao passo que os babões rareiam em situações críticas, fazendo a balança fica descompensada, prejudicando na formação de um senso crítico mais coerente.

Esse meu texto aqui é para tribo corneta que ocupa o concreto cinza do Almeidão em dias de jogo do Maior da Paraíba e principalmente fora do concreto físico, para o concreto virtual. Essa tribo que tem como pajé Renato Mangabeira, que é numerosa, diversificada, organizada em subtribos (algumas muito bem articuladas) e que tem colocado o dedo na ferida quando se trata de erros na condução do nosso querido clube da estrela vermelha.

 

Vamos Botafogo

A cultura popular é soberana, entendo eu, e muito do que é dito pelo povo sabiamente traduz com fidelidade tudo que poderia ser dito de maneira erudita, em palavras simples e analogias fáceis. Os provérbios populares são uma das melhores partes dessa cultura soberana. Um deles alerta: prego que se destaca toma martelada.

Parafraseando o provérbio para o nosso contexto, eu diria que a corneta que toca mais alto é muito mais notada. Na nossa história recente nenhuma corneta soou pela acústica errática do Almeidão tão forte quanto a do Bora Belo. O grupo, que iniciou o projeto em 2016 de um canal de comunicação de torcedores para torcedores no Instagram, foi perspicaz e extremamente competente no objetivo a que se propôs.

Conseguiu rapidamente captar os anseios dos torcedores, deu espaço às críticas, amplificou o pleito da arquibancada. Primeiro porque nossa torcida àquela altura carecia demais de espaços como esse. Segundo porque a estética e o conteúdo eram muitos bons, as postagens eram muito bem feitas, agradáveis, precisas.

Além de entregar exatamente aquilo que a torcida pedia, a página passou a soltar algumas informações de bastidores, vazar informações em primeira mão, ingredientes que faltavam para ganharem ainda mais relevância e seguidores.Goste você ou não, torça ou não o nariz, em uma análise técnica e coerente, há que se dar o braço a torcer aos torcedores que pensaram o projeto, executaram e tiveram êxito.

Mas lembram do provérbio do prego? Pois é, a fama precede a infâmia. De tanto ganhar destaque, colocar a comunicação institucional do clube em saia justa, constranger diretores, principalmente pela qualidade no serviço de comunicação e pelas informações vazadas, o Bora Belo começou a cultivar antipatia. E o ranço que era restrito à diretoria, passou a ganhar bem aos pouquinhos uma amplitude na arquibancada.

Foto: TV Torcedor

Nossa torcida é feita de pessoas de todas as etnias, de classes sociais das mais distintas, de pessoas de todos os níveis de escolaridade, de jovens, adultos e idosos. É feita também de pessoas de senso crítico apurado, de “militância” pelo Belo de longa data, de cornetas com alguns dias a mais de sol e chuva de Almeidão, o corneta raiz. Naturalmente que o discurso recorrente de terra arrasada, poucas vezes condizente com a realidade e muitas vezes de um sensacionalismo incipiente, não ia colar com todo mundo que veste alvinegro e leva a estrela vermelha no peito.

Não me percebo em nenhuma das categorias que citei ali em cima e que geralmente tinham um pé atrás com o Bora Belo, aliás. Por mais que entendesse alguns problemas nas opiniões do grupo que gere a página, até então julgava que muito dos exageros dos caras eram por não conhecer o clube tão bem, principalmente na complexidade administrativa. Aliás, que se abra um parênteses nesse momento do texto, o grupo que toca o perfil do Instagram é heterogêneo em relação a seus membros enquanto entendimento de futebol, composto por botafoguenses mais jovens em relação a clube e outros com mais alguns anos de Almeidão.

Os meus debates com alguns dos torcedores que faziam parte do grupo eram recorrentes nos grupos de WhatsApp. E em todos eles eu saia cada vez mais certo de que as críticas eram superficiais, tanto por reproduzir muito do que era dito majoritariamente na arquibancada (aquele discurso generalista de que nada presta), quanto por falta de vivência interna de como funcionava o clube e de quais dificuldades um clube do tamanho do Botafogo da Paraíba precisava enfrentar todo santo dia para existir e depois para competir.

Naquela altura, lá pelos idos de 2017, eu sentia ambição no grupo. Muito se falava em tom de brincadeira no projeto de tocar um trabalho nas mídias do clube (o que acabou acontecendo indiretamente comigo quando convidei Renner Ribeiro pra trabalhar comigo), mas me questionava muito se o grupo queria mesmo assumir esse risco, estar do outro lado era sempre mais cômodo.

Prelúdio político

Tal qual a Espanha descrita por Hemingway no fim da década de 1930, de quem eu tive a audácia de parafrasear o título de uma de suas obras na chamada deste texto (talvez a melhor delas), o Botafogo passa por uma guerra civil, no sentido figurativo, obviamente. Desde o rompimento público entre Sérgio Meira, atual presidente do clube, e Breno Morais, ex-VP de Futebol, o clube e a torcida começaram a viver um período de tensões na disputa de narrativas. Um quadro bem novo para muitos, categoria a qual me incluo.

O rompimento, oficialmente, flagrado no fim de 2019, reconfigurou algumas peças nesse xadrez político alvinegro. Sérgio Meira trouxe para gestão alguns membros do Conselho Deliberativo que até então não tinham oportunidade de participar da gestão executiva do clube com o desafio de mostrar que o clube poderia ser gerido sem a cobertura preventiva financeira que havia com Breno. Rapidamente o grupo de Sérgio Meira enxergou no marketing e na comunicação uma boa alternativa para rentabilizar o clube.

E nesse planejamento o Botafogo conseguiu alguns bons resultados financeiros de fato, outros resultados foram maquiados, mas elejo o principal feito a marca superada de 4 mil sócios aliadas às contratações de nomes de apelo midiático como Léo Moura e Felipe. A estratégia, provavelmente, teria surtido bastante efeito se não houvesse uma paralisação devido à pandemia do coronavírus e se as vitórias dentro de campo dessem lastro aos trabalhos fora dele.

Com tanto peso dado à comunicação na gestão do clube, o setor se tornou protagonista e os agentes ganharam moral internamente. E um nome, em específico, ganhou relevância na gestão executiva, Renan Cavalcanti, conselheiro que havia ingressado no Conselho Deliberativo do Botafogo pelas mãos do agora adversário político Breno Morais. A influência do diretor adjunto de marketing, aliás, foi citada pelo ex-treinador Evaristo Piza no episódio #41 do PodBotafogo.

Foto: Paulo Cavalcanti

Renan é jovem, e apesar de não ser comunicólogo por formação tem especialização em marketing, é torcedor do clube de arquibancada. Consegue ler bem as dinâmicas atuais da nossa torcida, captar os discursos hegemônicos entre os torcedores e reconhecer quem tem poder de promover consensos, formar opinião.

Foi de Renan que recebemos o convite para que o PodBotafogo fosse “oficializado” como veículo do clube após gravação do episódio especial com ele, com acesso irrestrito a jogadores e comissão técnica, uma oportunidade muito boa de levar uma resenha de qualidade com os caras que correm por aquilo que a gente ama.

A ideia não avançou da nossa parte porque a gente sabia que ao ter esse bônus, teríamos o ônus de atenuar o tom das críticas, talvez até de nos impormos uma autocensura. Não lembro se chegamos a responder que não ia dar certo topar o convite, mas a verdade é que se não houve resposta, o tempo tratou de dá-la por nós. O PodBotafogo seguiu, sem tanto acesso ao clube como antes, obviamente, mas dando espaço às visões críticas e aos elogios, a depender da visão política de cada um dos que compõe o grupo.

Silêncio ensurdecedor

Na época em que ainda estava na equipe, em 2019, houve uma tentativa de aproximação da comunicação do Belo com alguns influenciadores, torcedores que geriam páginas dedicadas ao clube em redes sociais. A intenção era de alinhar conteúdos com os perfis oficiais, amplificando as impressões e o engajamento. Conseguimos algumas poucas vezes, mas ideia não deu liga por uma série de fatores.

Dois dos principais perfis não toparam integrar a iniciativa: Belo Mil Grau e Bora Belo. Ambos pelo mesmo motivo, entendiam que ingressar em algo do tipo poderia incorrer em algum tipo de intimidação ao conteúdo deles, uma espécie de censura, algo que corretamente não estavam dispostos a fazer. Muito embora não tenha havido nada além de um espaço para ouvir a opinião de quem tocava os perfis ligados à torcida e a troca de conteúdo, imagens e vídeos.

O Belo Mil Grau é resultadista e todo mundo sabe disso. George não esconde de ninguém que, a depender do jogo, a postagem seria Clayton Rosas o CR7 do Nordeste, ou Clayton, o pipoqueiro da Maravilha. E para essa volatilidade é preciso haver certa independência. O resultadismo dele aliás me rendia explicações recorrentes na Maravilha. Mas esse texto não é para falar da minha relação de amor e ódio com meu irmão George Mil Grau.

O Bora Belo seguia em ótima forma naquela altura. Corneta afiadíssima, apontando erros, trazendo críticas pertinentes e por vezes exagerando no tom, numa estratégia arriscada de jogar temas sérios para torcida, na base associações fáceis e acusações graves munidas de senso comum.

Num levantamento não tão rápido feito por mim, somente no ano de 2019, num espaço temporal entre julho e dezembro, foram publicadas nove postagens com críticas diretas à gestão do presidente Sérgio Meira. Algumas até corrosivas, excessivamente ofensivas, como chamar o mandatário de laranja. As cornetadas irresponsáveis, eu diria, renderam o óbvio: indignação e ira por parte da diretoria naquele momento. Rendeu também uma ação judicial.

O Botafogo Futebol Clube moveu um processo contra o Facebook, administradora do Instagram, para descobrir o responsável ou os responsáveis pela administração da página. Um pleito mais que justo, claramente, porque o grupo se vale de anonimato ou da falta de transparência em diversos aspectos que deveriam ser (na minha visão) do conhecimento do torcedor (ainda que indiretamente) como: quais torcedores participam da produção do conteúdo da página, quais os critérios de relevância de informação para gerar publicação, qual a hierarquia presente no grupo (existem colaboradores)?

Foto: Paulo Cavalcanti

A ação foi ingressada pelo jurídico do clube em agosto de 2019. Nos meses subsequentes as postagens batendo na diretoria se seguiram. Até dezembro daquele ano. Acompanhando o Bora Belo a partir de janeiro de 2020, até a presente data de publicação deste extenso (diria até desnecessário) texto, eu tenho certeza uma coisa. Os problemas na gestão de Sérgio Meira cessaram.

O que automaticamente traz as seguintes inferências: Sérgio e os conselheiros que tocam a diretoria executiva estão gabaritando na gestão do clube ou meus amigos do Bora Belo calaram as cornetas.

No caso da segunda hipótese ser a verdadeira. Qual fato extraordinário ocorreu para que houvesse uma mudança de postura? O que teria feito a página mais influente relacionada ao Botafogo feita por torcedores abandonarem a corneta e assumirem uma postura senão de babão, de alheio? Como essa postura ajuda a formar uma torcida do Botafogo mais informada, crítica e participativa?

Deixando claro que não busco respostas para as perguntas, mas entendo como naturais em uma metodologia dedutiva. São meramente retóricas, por mais que não pareçam…

Vivemos tempos atípicos. Embora sirva de referência aos dias de pandemia, me refiro aos de acirramento político no Maior da Paraíba, de batida de chapas, de pensamentos antagônicos e visões distintas de entenderem um mesmo clube. Nossa torcida carece de fontes confiáveis, espaços seguros de debate, opiniões transparentes e embasadas, de alimento crítico para conseguir participar muito em breve dignamente das decisões que passam por quem gere o clube.

Nossa torcida precisa ser emancipada. Somos uma massa que reaprendeu a torcer, mas ainda não aprendeu a viver o clube. Entender a complexidade perpassa inúmeras variantes, mas a principal delas é o esclarecimento do torcedor em relação ao seu papel na arquibancada do Almeidão, mas também no piso da Maravilha.

Esse ideal deve ser inegociável.

Longe do olhar fácil e da leitura óbvia, quem entende a pluralidade da unidade da torcida do Belo não cai em senso comum, em discurso pré-moldado, em frase totalizante, em dogma. E desses torcedores, virá um novo Botafogo.

Independente de por quem calam, as cornetas calam.

Um silêncio urrante que diz muito.